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Em outubro de 1927, na cidade de Bruxelas, físicos se reuniram em uma conferência para discutir as fundações da teoria quântica. Entre os 29 cientistas participantes, estava uma única mulher: Marie Curie. Curie, nascida polonesa, era física e química, desenvolveu estudos pioneiros em radioatividade, e foi a primeira pessoa no mundo a ganhar dois prêmios Nobel. A história é inspiradora, mas traz consigo uma dúvida que não sai da minha cabeça: quantas mulheres brilhantes estão escondidas e privadas, por toda sua vida, de desenvolverem suas habilidades, por simples e universal preconceito de gênero? Para Marie Curie ter chegado onde chegou, arrisco dizer que era a mais brilhante pessoa na conferência (da qual também participou Albert Einstein e Niels Bohr), e que precisou de muito mais dedicação, competência, apoio, e mesmo sorte, do que seus colegas.
Como neurocientista, escuto muito a pergunta: as diferenças naturais entre sistemas nervosos centrais de homens e mulheres justificam as diferenças que vemos no comportamento deles? A lista de vieses é grande e criativa: mulheres são melhores em multitarefas, são boas em humanas e ruins em exatas, são cuidadoras natas, choram à toa, entre várias outras curiosidades. A dúvida que existe no senso comum a respeito da veracidade dessas informações reflete o fato de que elas são falsas. Não há (até a criação desse texto) estudos tecnicamente replicáveis e confiáveis que traduzam as diferenças anatômicas existentes entre homens e mulheres em diferenças funcionais que deem conta da justificação dessas afirmações. Ou seja, a esmagadora maioria das diferenças de habilidades entre homens e mulheres se deve a questões culturais, não biológicas. Isso se aplica à ligação entre mãe e filhos (estudos mostram que salários de mães adotivas sofrem impacto negativo igual ao de mães biológicas após o nascimento do filho, que não impacta o salário dos pais em ambos os casos), a atividades em que força motora seja necessária, e à capacidade de articular sentimentos. Em resumo, a ciência mostra que mulheres e homens têm, naturalmente, capacidade cognitiva e vigor físico para desenvolver as mesmas funções.
Então de onde as diferenças vem? Da educação. Desde que nascem, os bebês são colocados em uma de duas “caixas”, com base em seu órgão genital: se tem vagina, na caixa das mulheres; se tem pênis, na caixa dos homens. E essas “caixas” têm mensagens e valores muito claros. Se o bebê é mulher, ele é estimulado a ser sensível, cuidador, atraente. Se é homem, deve ser forte, agressivo e poderoso. Mas essas identidades não são forjadas do dia para a noite. São anos dando bonecas, vassourinhas, ferros de passar para as primeiras, e carrinhos, brinquedos de montar e jogos para os últimos. Incentivando o cuidado com o outro e com a aparência com as primeiras, e a agressividade e negação de sentimentos (com exceção da raiva) com os últimos. Isso tem impacto determinante, ano após ano, no desenvolvimento dessas crianças. Na infância, o cérebro é como uma “esponjinha” com uma capacidade de aprendizado impressionante, vinda do boom neuronal que ocorre nessa fase do desenvolvimento humano. As crianças aprendem rapidamente com as recompensas e as punições que recebem. Às vezes diretas, como com frases “isso não é brinquedo de menino”. Às vezes indiretas, como quando franzimos a testa quando uma menina se suja ou se arrisca fazendo manobras com um carrinho. Esses vieses estão em nossos músculos, nos recantos das nossas redes de memória, e os passamos adiante muitas vezes sem perceber. Os estereótipos são replicados na maneira como vestimos as crianças, como as elogiamos e até como mostramos amor a elas. E acaba por influenciar (em alguns casos, determinar) suas escolhas profissionais. Pode parecer um problema tão profundo que não há muito o que se fazer a respeito. Mas há: primeiro, aceitar que os vieses existem em nós e os replicamos sem perceber; depois, aprender a identificá-los e nos propormos a sermos agentes de mudança em nosso contexto familiar, onde toda boa mudança deve começar (veja recomendações de fontes ao fim desse artigo).
Não é novidade que subestimamos o impacto da educação no desenvolvimento infantil. Somos um país que não investe nisso, e tem dificuldade em entender que há uma relação direta e positiva entre respeito à cidadania e nível de educação. Menciono respeito à cidadania porque preconceitos de gênero (assim como de raça, religião, classe social, orientação sexual) são um desrespeito ao indivíduo e um grande desfavor para as nações. Quando barramos pessoas na sua capacidade de desenvolvimento intelectual e profissional baseados em seu gênero (raça, etc) estamos segurando o desenvolvimento científico e tecnológico que poderia nos livrar de muitos sofrimentos. O trabalho de Curie foi necessário para diagnóstico e tratamento de diversas doenças e traumas, já que levou ao desenvolvimento da radiografia e da radioterapia, por exemplo.
Mas como falar em educação equalitária em um país em que mais de 4,4 milhões de crianças se encontram em situação de extrema pobreza - ou seja 11,5% das pessoas de zero e 13 anos (Ibre/FGV) vivendo com cerca de R$150 mensais? Onde falta comida e moradia adequada, em geral falta também incentivo para os estudos e a estabilidade emocional de que crianças precisam para se desenvolverem bem – o cortisol, por exemplo, neurotransmissor liberado quando estamos sob estresse, pode causar impacto considerável no desenvolvimento do sistema nervoso, em especial em situações de estresse contínuo. Assim, a má distribuição de renda leva a situações de pobreza, que coloca milhares de crianças em risco de fome e violência, com dificuldade de acesso à educação formal e informal, aquela que em casa ela teria dos seus cuidadores. Sem apoio, elas “se viram” para sobreviver, não conseguem se capacitar com uma educação especializada, muitas vezes não gozam de cuidados que respeitem suas habilidades individuais, e acabam por repetir comportamentos que levam à manutenção do ciclo de pobreza.
Iniciativas de impacto social são uma forma de romper esse ciclo, e têm um impacto imenso quando olhamos de perto. Não só os indivíduos beneficiados pela educação vão desenvolver suas habilidades e eventualmente gerar conhecimentos que nos impactem positivamente a todos, mas também têm maiores chances de criarem crianças com comportamentos socialmente mais saudáveis, de respeito às diferenças individuais e ausência de limites para sonhar, pois não conhecem “tetos de vidro” que as segure. Elas se tornam agentes de mudança, em uma grande onda de impacto social positivo. O Alicerce Educação é uma dessas iniciativas. Ele se propõe a oferecer educação de alta qualidade, com metodologia própria desenvolvida por nomes reconhecidos da pedagogia nacional, abarcando não só ensino formal, mas também suporte emocional, a um preço acessível à população de baixa renda – com um modelo de negócio que estimula a arrecadação de bolsas para as crianças atendidas.
Em um país com mobilidade social tão precária e abismos sociais entre os maiores do mundo, falar sobre preconceitos de gênero e o impacto da educação no desenvolvimento das crianças requer pensar em como apoiar iniciativas que rompam o ciclo de pobreza no qual nos emaranhamos cada dia mais. Mas a recompensa será imensa. Quando as mulheres deixarem se ser menos de 30% do total de cientistas ativos no mundo (UNESCO UIS/2020), quanto avançaremos no tratamento de doenças como alzheimer, parkinson, câncer, e em soluções sustentáveis para lixo e esgoto gerados por nossa espécie, assim como água e energia limpas e acessíveis para cidadãos comuns! Está em nossas mãos permitir que todas as Maries Curies trancadas em estereótipos (e muitas vezes em pobreza) tenham a chance e o apoio necessários para mudar nossa história.
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Repense o elogio - https://www.youtube.com/watch?v=oxxIME6RDvc
O silêncio dos homens - https://www.youtube.com/watch?v=NRom49UVXCE
Girl toys vs boy toys: The experiment - https://www.youtube.com/watch?v=nWu44AqF0iI&t=7s
Like a girl - https://www.youtube.com/watch?v=XjJQBjWYDT
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