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Por que não há unicórnios liderados por mulheres



Ana tem quase dois anos. Curiosa, domina bem o caminhar e correr, desenha linhas no papel, e a cada dia novas palavras fazem parte do seu vocabulário. Já sabe que seus pais ficam furiosos quando ela se “aventura” em explorações motoras menos convencionais, e não gostam que ela se suje muito. Eles em geral brincam com ela com bonecas e bichinhos de pelúcia, e a pequena já tem uma cozinha em miniatura. As pessoas de seu contato familiar a elogiam dizendo ser linda, charmosa, boazinha. O melhor amigo da Ana na escolinha é o Miguel. Curioso, domina bem o caminhar e correr, desenha linhas no papel, e a cada dia novas palavras fazem parte do seu vocabulário. Já sabe que seus pais não se importam que ele se “aventure” em explorações motoras menos convencionais, e ficam por perto para ajudá-lo. Ele também brinca a vontade e se suja com frequëncia, e seus brinquedos favoritos são de montar e de encaixe. As pessoas de seu contato familiar o elogiam com palavras como esperto, sapeca, corajoso.


Quando a Ana e o Miguel crescerem, ele ganhará cerca de 30% mais do que ela para realizar um mesmo trabalho. Ela provavelmente fará três vezes mais do que ele o trabalho de sua casa, mesmo se trabalhar fora. Altas são as chances de ela ser mais interrompida do que ele no ambiente profissional e pessoal, ser cobrada para ser compreensiva, colaborativa e multitarefas. Ele receberá mais recompensas por ser assertivo, tolerante a riscos e competitivo. E como diversos estudos já mostraram, ela tenderá a receber propostas salariais muito mais baixas do que seu colega Miguel. Mas não começa e nem termina aqui.


Por que poucas são as mulheres em salas de aula em cursos de matemática, engenharia, tecnologia em geral? Por que elas são apenas 5% em quadros de diretoria, presidência e conselho consultivo em empresas brasileiras? E por que elas não estão entre os fundadores, homens todos, dos unicórnios brasileiros? (unicórnios são empresas tecnológicas novas avaliadas em mais de 1 bilhão de dólares)


A Ana não estará entre esses líderes principalmente pela maneira como ela foi educada. Conforme crescemos, recebemos recompensas e punições pelo que fazemos. Os educadores (pais, mães, ou familiares próximos) são os maiores influenciadores aqui. Quando uma criança joga areia na cabeça do amiguinho e o adulto responsável não diz nada, a criança achará que aquele comportamento é aceitável. E o repetirá sempre que quiser. Se o comportamento é repreendido, por exemplo com um olhar de desaprovação e uma mensagem verbal de que aquilo não se faz, ele tende a ser extinto. Crianças nascem, entre suas orelhas, com o mais potente hardware conhecido neste planeta. Seus educadores e o tempo vão direcionando a construção de memórias deste hardware, que influencia os tipos de comportamento que serão repetidos pelo pequeno futuro adulto a cada experiência de vida. Essa rede de memórias é plástica, mutável a cada dia. Mas esses aprendizados da infância tendem a influenciar a estrutura sob a qual seus comportamentos se baseiam.


Crianças de 1 ano a 1,5 anos são capazes de identificar quando uma pessoa a sua volta está sofrendo uma repreensão, e ela mesma evitar o comportamento repreendido (uma peculiaridade da espécie humana, em geral outros primatas só o fazem quando a repreensão é para si mesmo). Também muito cedo, em média aos três anos, crianças já exibem a capacidade de imaginar o que se passa na cabeça do outro frente a uma situação inesperada (fenômeno em ciência cunhado como Teoria da Mente). Elas conseguem prever o que o outro irá pensar ou sentir frente a uma situação. Desde muito cedo elas aprendem a identificar os comportamentos que são estimulados ou repreendidos pelos pais.

Quando desestimulamos meninas a fazerem brincadeiras de aventura física, exploração, bagunça e “sujeira”, elas aprendem que este comportamento deve ser evitado. Quando são valorizadas principalmente por atributos físicos, vão focar seus esforços para estarem esteticamente bem. Quando são mais estimuladas para as letras do que para os números, quando não exploram brinquedos de montar que exigem lógica, chances fortes de se manterem longe de disciplinas exatas. E elas acabam também por entender que assertividade e busca por risco não é para elas. Não é de se estranhar que elas não programem, não empreendam, não levantem a mão. Se você acha que isso é um exagero, faça uma busca rápida na internet por fantasias para meninos e fantasias para meninas. Pense nos resultados. Ou procure por heróis – de Peter Pan a Deus, são quase todos homens.


Muita água passa sob essa ponte. Ela inclui ondas de licenças paternidades ridiculamente curtas, desaceleração de carreira para elas após filhos, sistema de trabalho que não assume que colaboradores são pais e mães e precisam de flexibilidade para produzir bem e melhor. Mas se há uma água que não passa por aí é a referente a diferenças naturais entre homens e mulheres. O cérebro delas e deles não apresenta diferenças anatômicas que se traduzem em diferenças funcionais que expliquem este cenário. Ou seja, se existem vários motivos pelos quais elas são mais multitarefas, cuidam mais da casa, são menos assertivas, e empreendem menos, há só uma certeza: nada disso tem a ver com diferenças naturais entre os cérebros de homens e mulheres. Tem a ver com aprendizado (nurture, e não nature). E isso é muito mais perturbador e doloroso, e exige muito mais trabalho. Afinal, se fosse um problema natural, não haveria muito o que fazer. Se realmente pessoas de pele negra fossem submissas por natureza, e judeus desonestos por natureza, não haveria nada a se fazer sobre a escravidão e o holocausto. Mas a natureza não tem nada a ver com isso. Somos nós. Nós somos responsáveis pela discriminação que cultivamos e alimentamos entre nós mesmos.


Não há mulheres em empresas unicórnio. Na capa da revista Exame de dezembro 2019, intitulada O Ano dos Unicórnios, há 6 homens, nenhuma mulher. Não diga parabéns no dia das mulheres do ano que vem. Diga sinto muito. E incentive iniciativas da sociedade que busquem remar para o lado do respeito ao hardware entre nossas orelhas. Há muitas dessas iniciativas por aí – He for She, Lean In, Phy Ladies, Mulheres 360, e tantas outras, incluindo pequenas instituições, do seu bairro, que trabalham com garotas em situação de vulnerabilidade, e várias outras frentes de impacto social positivo. Tem também as mulheres com quem você convive, sua filha, sobrinha, aluna. Pergunte-se o que você tem estimulado nelas.


É preciso parar de culpar a natureza, identificar preconceitos e chamar para si o protagonismo de garantir que as Anas terão as mesmas oportunidades de vida e carreira que os Miguéis, sejam lá quais forem suas escolhas pessoais. Então, o Dia das Mulheres será só história de uma época em que era necessário um dia para se lembrar do que é esquecido por todos os outros dias do ano. E aí, quem sabe, o mundo se beneficiará das ideias inovadoras abafadas e escondidas nas cabecinhas das milhares de meninas e mulheres do mundo.


Para saber mais: TED Talks: Sheryl Sandberg, Michael Kimmel, Chimamanda Adichie.

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